Ela se deita sobre as pedras sujas do jardim. Há areia e cascalho e os coquinhos que desmaiaram das palmeiras e agora ela os cobre à sua maneira com os cabelos castanhos, mais ralos no último ano. O céu está cinza, um homem jovem e forte morreu, os gatos brigam sem motivo, Jesus Cristo nasceu, ela descansa as mãos sobre o umbigo porque chove, pouco. As folhas das palmeiras balançam ao vento morno. Ela faz cálculos novos, a modo de repetição.
“Em 2024...”, ela começa, “...não”.
O problema foi ter ouvido demais a mesma canção no carro dos pais, ao lado do lago, a caminho dos almoços de domingo. Chorado mais, amado mais, ter visto o sol se por. O problema foi ter confundido epitáfio com semáforo e então parado, bem-comportada, a cada mudança de sinal. O mal foi não ter pulado no Carnaval – às vezes, pularia o Carnaval, se pudesse. A pressa de ir embora, “sim, senhora”, ela concorda, seria uma benesse se, só de vez em quando, pudesse saltar para fora do mundo. O nó está no fundo (rimar mundo com fundo, uma questão de interesse), está naquilo que lhe tece – que nos tece, tecido caprichoso que somos. E então nos tocamos que começa a sentir dó de si mesma. Lá dentro sua mãe põe a mesa. Ela descansa as mãos sobre o umbigo. Chove ainda, pouco.
“Em 2025...”, ela tenta, “...não”.
As corruíras gritam à moda de invasão, voando descontroladas de um galho a outro. Cruzam o espaço cinzento, um pensamento que lhe passa sobre a cabeça. Os pássaros são sempre felizes. Sem matizes, sem índices de arrependimento. Aqui existimos, que mais queremos? Vivem sob um muito firme firmamento. Sua mãe lhe disse mais cedo: você percebeu? Você já tinha se atentado? Nascemos em San-ta-a-na-do-li-vra-men-to. Deve ser um presságio, com certeza um acontecimento. Devemos, assim, ser mais livres, a mãe disse, ou talvez foram os pássaros que gritaram.
“No ano que vem, irei...”
Não irá nada, ela de repente se ira, já foi muito. Cultuou a deusa e a si mesma e a saúde e seus frugais desejos de escapismo. E, no fim do abismo, está viva. Parece mais do que suficiente. Ficou doente e sarou, amou de novo, com vertigem crescente, abraçou seus queridos, se manteve presente, o mais que conseguiu. Não fugiu, apesar do fogo e da fumaça e de todas as emboscadas. Testemunhou um nascente grande amor que então se apagou como uma vela e mesmo assim permaneceu, intacto, no coração do amigo dela. É a ele que ela escreve – sob a chuva, a leve cascata de gotas –, e não à própria ansiedade pequena, como inicialmente imaginava. Ela observa os pássaros, mais lentos agora, e gostaria de dizê-lo: sei que o amor morreu, mas sei também que é eterno.
“Amigo, quando olhei seu grande amor deitado quieto naquela sala”, ela pondera, “vi seu peito mexer-se para cima e para baixo e sabia que era o seu calor que ele respirava. Todo o ardor do bem querer deixado, tanto sobre quanto embaixo da terra. Nenhum gesto está expirado. É só o corpo que some. Todo amor é eterno.”
Ainda chove, pouco.