Passar diante do café da avenida quando as luzes são acesas para a noite. Em um minuto, não se veem, no outro, ilumina-se algo, não a varanda de madeira, com mesas e cadeiras vazias, nem as palmeiras falsas ao fundo, muito menos as plásticas samambaias, mas esperanzas, uma ideia. Os carros na avenida não param, como não para quem observa o café. Não há cena, não há pés, apenas rodas girando no asfalto. Haveria, sim, uma saída.
Haveria, sim, uma saída. Não seria um buraco ou uma caverna nem uma escada estreita e pequena. Seria assim como o mais inteligente artifício, uma bela estratégia de fundo – suave afogamento –, não de fuga.
Explico melhor.
Haveria, sim, uma pena em fugir e talvez não um alívio. Ela disse ao psicanalista: no próximo solstício ou no ano que vem, eu quereria querer. É isso que desejo, até mais que viver. Ser muito mais do que sou, ocupar, gastar, esgotar até arrefecer – a vontade, o querer.
A saída estaria na outra direção. Seria areia movediça, não delirante tufão – lá vai Dorothy e sua casinha, nós somos a gramínea que ficou. Estaria aí a saída: não a bala perdida, mas o armistício. Uma manhã de sol no umbigo, um domingo de sono comprido, o sorriso irônico do mesmo amigo no momento que confiamos mais uma vez, com e sem estupidez: amor. E talvez o vinho e talvez a dor – senti-la, sim, por favor. Isso de correr já está velho, credo, melhor o vivido – não o atravessado, que dele já sucumbiram uns tantos finados na Rua dos Pinheiros: foram cruzar e olharam para o lado errado, o do sentimental-torpor. Sim, aquele que cega, que não enxerga, um pacote de palavras à pronta-entrega: potente ardor, olhos úmidos, semblante afetado, corpo sensível, o gesto sempre afetivo, um pouco brega. O horror às palavras concretas: pedra, cimento, árvores, pássaros, fios de eletricidade, buzinas, guerra, salas de espera.
Mas não é bem isso que me interessa, procuro uma saída.
Talvez: reinventar as palavras, virá-las do avesso, mastigá-las, cuspi-las de outro jeito, despi-las da sacralidade (que chatice!), usá-las para apoiar o queixo. Talvez: livrar a vida de penduricalhos excessivos, desmarcar compromissos – nada é assim tão importante, se fosse segundo antes essa reunião nem existiria e o que é um nome diante do esquecimento da História?
Talvez: fazer da memória um fio que enrolamos muito levemente entre os dedos para não os queimar no atrito, para não alterar o ido, como se houvesse um fim mais cabível. Não há fim algum, somos como fomos, desejamos apenas porque é possível, sem linha de chegada. O fio que passa entre os dedos, entre os dias: nem o prenderemos nem o jogaremos fora. No passado, procuremos só o que ainda está vivo. Ouvi-lo, apreendê-lo, para então repensar o destino (nem inferno nem paraíso), se necessário.
Desejamos porque podemos e neste mesmo texto há o início e o fim do mundo, a circularidade de Nêgo Bispo de descer ao fundo, um suave afogamento nas águas do tempo – não como a casa de Dorothy que voa, despedaçada pelo vento, mas como a gramínea fincada. O que digo: não somos eternos, mas somos mais velhos do que uma era fracassada. Talvez deixá-la escorrer entre nós (chega de atravessamentos...), talvez não se atar tanto a ela. Não apressar a ruína, atrasar os relógios, fugir a sucessos mandatórios, gozar algum tipo de alegria – nada mais anticapitalista, eu diria. Mas já falei do que fica.
Fui clara?
(Imagine só: daqui a 50 anos sua conta do Instagram estará inativa, que maravilha!)
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