40. Futuro...40
Enquanto ela esfrega a panela com uma esponja já velha, amolecida e úmida, agora laranja pelo contato com os restos queimados de molho de tomate do fundo, enquanto ela afunda os dedos na água suja e a joga fora e a vê descer lentamente pela pia um pouco entupida, Carl Jung inclina o corpo para frente, apoiando as mãos enrrugadas sobre a bengala gasta. A cada pergunta, ele aproxima mais o rosto na tela do celular, como se precisasse se afastar da poltrona estampada de grandes folhas para pensar melhor, mais rápido. Seu pensamento, no início, é lento, o entrevistador é ágil. Deve também estar um tanto desconfortável ali, equilibrado sobre o filtro de barro, numa noite de agosto, um mês tão desagradável. Jung inclina-se e deixa ver os cabelos arrepiados – muito brancos e finos – na lateral de sua cabeça salpicada de manchas marrons, a faixa onde os fios resistem. Seu inglês troca os esses pelos zês, como um falante de alemão. Ele está na Suíça; ela, no Brasil. Carl Jung já morreu, ela continua viva.
Entardece um dia de agosto feito de fumaça. O sol irá despedir-se em breve, tão laranja quanto a esponja gasta. Carl Jung fala sobre a morte e ela lembra do que leu no museu sobre a migração climática, enquanto sua amiga temia que o Recife desaparecesse sob as águas. Sem rimas, basta!, ela decide, e termina a panela para concentrar-se. A exposição, o museu.
Sim, era a legenda de uma foto em que quatro mulheres paquistanesas, vestidas de túnicas coloridas e sentadas à beira de uma estrada de terra, encaram a câmera, enigmáticas. O sol se põe, o dia termina pacificamente ao fundo, atrás de uma tenda carmim e de homens ocupados, de costas. Mas, no primeiro plano, as quatro mulheres estão imóveis, sérias, os olhos borrados de um castanho-avermelhado a um só tempo impreciso e triste, como se não tivessem mais íris. Uma delas dizia, na legenda:
Nunca vi chover tanto em toda a minha vida. Choveu continuamente durante três meses, dia e noite. Agora, todas as nossas propriedades desapareceram. Nossos filhos adoecem repetidamente, um após o outro. Nossas vidas eram muito diferentes antes do dilúvio. Nós éramos felizes.
Sim, ela lembra. As frases "nós éramos felizes" e "nossos filhos adoecem repetidamente, um após o outro", tão prosaicas e tão bíblicas, que a seguiram do museu à calçada, da calçada ao metrô, do metrô à casa. E agora boiam na água da pia, entre a espuma avermelhada e os restos de massa – sem rimas, Ingrid, crie vergonha na cara.
Carl Jung continua falando. Ele não se cansa, apesar de parecer cansado. De perfil, com o terno quadriculado sobrando um pouco nos ombros, como se fosse de um número maior – o que lhe torna mais velho e frágil –, conta como conheceu Freud. O entrevistador pergunta se analisaram um ao outro. Sim, Jung responde. E quais eram os sonhos de Freud?, ele quer saber. Jung considera a pergunta "indiscreta" e alega o segredo profissional entre analista e analisando. O entrevistador argumenta que Freud está morto há muitos anos. Sim, Jung concede, mas essas questões duram mais do que a vida.
Não é isso que a fez lembrar as mulheres paquistanesas e sua felicidade morta. Ela pega o celular, volta ao início da entrevista. O entrevistador pergunta a Jung se uma terceira guerra mundial é provável, já que ele previu, nos anos 1930, a Segunda Guerra a partir dos sonhos de seus pacientes alemães. Jung não tem indicações a esse respeito e diz que é difícil sabê-lo agora, no contexto de 1959, porque as pessoas estão cheias de medo, de apreensões. Isolar um deles é impossível. De uma coisa tem certeza, no entanto: uma grande mudança na nossa atitude psicológica é iminente. Por quê?, questiona o entrevistador.
Because we need more - we need more psychology. We need more understanding of human nature, because the only real danger that exists is man himself. He is the great danger and we are pitifully unaware of it. We know nothing of man, far too little. His psyche should be studied, because we are the origin of all coming evil.
Não sabemos nada do homem e ele é o grande inimigo.
No museu, a amiga que tem medo do Recife desaparecer, parou em frente a um painel: 30,2 milhões de pessoas migraram por causa das mudanças climáticas em 2022. Se fosse em dez anos, a amiga disse, seria melhor. Sim, ela concordou. Mas é em um ano só.
We know nothing of man, far too little. His psyche should be studied, because we are the origin of all coming evil.
É um pouco óbvio - ela pensa, enquanto tira o último prato sujo da mesa -, mas ainda assim desconhecido. O homem, o seu mal.
No museu, ao lado da foto das mulheres paquistanesas de olhares vítreos, havia uma pequena sala onde um curta de animação se repetia, vazando a voz de Sofia. “Minha balança que o mar levou”, a menina dizia a cada cinco ou seis minutos. “Minha balança que o mar levou”. Na gravação que reverberava pela sala, Sofia narrava o livro que escreveu sobre sua balança enquanto bonecos de palito e o sol com um leve sorriso passavam pela tela. A comunidade em que Sofia morava foi comida pelo mar, de um lado, pelo estuário, de outro, e todos precisaram se mudar para uma terra mais segura. Deixada para trás, a sua balança. As crianças brincavam muito na balança, ela dizia, e lá parecia que iam sair voando, como passarinhos. A balança foi amarrada na árvore da família pelo meu avô, ela dizia, e depois arrastada inteirinha pelas ondas. “Minha balança que o mar levou”. No escuro, colorida pela projeção, sentada sozinha na arquibancada de caixas de madeira, ela percebeu que poderia chorar e se sentiu ridícula. “A árvore da família”. Na saída, encontrou a amiga, que, distraída, concordou com a tristeza, mas fez uma ponderação: é engraçado, pra mim era “balanço”, pra você não?
Sem rimas, Ingrid, por favor. Aqui falamos da morte. Nós, não, Jung sobre o filtro de barro, por cima dos talheres molhados, ensaboados. Ele inclina a cabeça para o lado, como se quisesse aproximar a orelha esquerda da boca do entrevistador, que pergunta sobre sua concepção da morte como tão importante quanto o nascimento, como uma parte integral da vida. But surely it can't be like birth if it's an end, can it?
Jung franze as sobrancelhas durante a questão e move pouco os lábios finos, como se mastigasse a si mesmo muito discretamente. As rugas de sua testa são desenhadas como ondas, os óculos perfeitamente redondos. Ele está inclinado para frente: sim, é um fim, ele concorda, mas não estamos muito certos sobre esse fim, porque, você sabe, há essas faculdades peculiares da psique que não estão inteiramente confinadas ao tempo e ao espaço. Jung então lembra que as pessoas têm sonhos e visões sobre o futuro e que só a ignorância nega esse fato. É evidente que essas visões existem e sempre existiram. E, portanto, se a psique não está sujeita a essas leis, isso significa uma continuidade prática da vida, uma existência psíquica para além do tempo e do espaço.
Quando ela dorme – ela lembra agora, sobre a pia –, quando ela dorme os mares já avançaram, já engoliram a terra, a balança se soltou, a árvore da família morreu. Mas também – a água corre fria sobre suas mãos –, mas também às vezes os amantes subaquáticos resistem nas cidades submersas, o Recife, o Rio de Janeiro, os amores sem tempo, por milênios, milênios no ar. Copacabana está vazia, os prédios modernistas com suas janelas cinzas formam a pista silenciosa para uma gôndola modorrenta passar. Sem relógios, talvez sem memória, os amantes podem, por fim, gozar. Sozinhos, enfim.
Que conselho você daria para as pessoas na parte final da vida para permitir que elas façam isso, quando a maioria delas, de fato, acredita que a morte é o fim de tudo?, o entrevistador atravessa os devaneios úmidos dela, um tanto grosseiro, apesar da polidez britânica. A pergunta vale a interrupção. Ela fecha a torneira, escuta Jung com atenção.
Well, you see, I have treated many old people, and it's quite interesting to watch what the unconscious is doing with the fact that it is apparently threatened with a complete end. It disregards it. Life behaves as if it were going on, and so I think it is better for an old person to live on, to look forward to the next day, if he had to spend centuries, and then he lives properly. But when he is afraid, when he doesn't look forward, he looks back, he petrifies, he gets stiff and he dies before his time.
As panelas, limpas, cheirando a detergente, brilham sob os últimos raios alaranjados que entram pela janela e derramam sua chuva de gotas sobre os talheres no segundo andar do escorredor. As gotas não têm pressa, a cena poderia durar para sempre. A vida se comporta como se fosse continuar.
A cena poderia durar para sempre: na volta do museu à casa, no vagão do metrô, dois namorados envoltos em névoa. Sua memória os recupera. A adolescente, de moletom largo, que aquecia e desfazia suas formas, olhava para cima, para ele, enquanto seu cabelo, dividido ao meio, explodia em duas chiquinhas black power que o alcançavam nos ombros. Ela olhava para cima, infantil e sedutora, e sorria. Ele a recebia de boa vontade. Todo seu corpo era receptivo a ela. Mesmo assim, não se abraçavam, não se encostavam, a menina variava dentro dos limites dos braços dele, que se apoiavam um na barra ao lado, o outro na porta de metal atrás, um cosmos traçado por pele. Ela o ocupava totalmente. Eles moviam-se lentos, no balanço do vagão, sem tocarem-se. Então ela pegou a mão dele, a mão do braço que estava apoiado sobre a barra – uma de suas fronteiras –, então pegou a mão dele e esfregou o indicador no seu polegar duas vezes, muito suave, como se limpasse uma mancha fraca ou como se quisesse comprovar sua existência, muito suave, e voltou a enfiar os dedos no bolso do moletom e a balançar e a olhá-lo com a ingenuidade de uma criança, uma trança fina atrás da orelha, dois brincos de prata na cartilagem, a névoa que os envolvia e tragava a todos que os observavam, sem reserva. Amantes sobreviventes à enchente iminente, na iminência de amarem-se. Amantes submarinos.
Life behaves as if it were going on
A cena dura para sempre, a estação nunca chega.